Falecido recentemente, este japonês que viveu mais de 50 anos no bairro da Aclimação em São Paulo, conta uma história fantástica que reproduzimos com a permissão de sua filha Elza Yoshie, publicada num jornal local pouco antes de seu falecimento.
Horácio Myoshi Shigueno carrega o Japão no rosto. Os olhos puxados revelam não só a origem, mas o humor: são olhos vivos, que investigam o interlocutor com inteligência e boa vontade. A boca se abre num sorriso franco com a maior facilidade. E as rugas nem de longe demonstram que este pequeno senhor, ativo e inquieto, já vai completar 80 anos.
Morador do nosso bairro há quase 50 anos, Horácio é de uma simplicidade comovente. Fala de si mesmo com a franqueza e a tranquilidade de quem viveu uma vida muito longa, muito digna, mas também muito sacrificada. Filho de comerciantes japoneses da província de Nagano-ken, Suwa, aos 9 anos embarcava para o Brasil, imigrado, vendo no fim do oceano a terra nova que se tornaria a sua nova terra. (Só voltaria ao Japão 60 anos depois, em 1990, mas essa é uma história que contaremos adiante.)
A terra nova
“Nasci perto do lago Suwako, cidade Okaya, perto do rio Tenju-gawa, o mais longo do Japão", ele conta. Em sua cidade natal, o pai mantinha um bazar que comerciava especialmente produtos cosméticos e de perfumaria para as moças que trabalhavam nas fábricas de tecido em lã e seda. Horácio tinha então 9 anos e estava no segundo ano da escola.
Decidido a imigrar no período em que Japão e China guerreavam por territórios como a Manchúria, Shigueso Shigueno juntou a família e tomou o rumo do Brasil. "Japonês naquele tempo estava louco", analisa Horácio, mostrando sensatez. "Queria conquistar o mundo, invadir China, fazer guerra". Não analisa as razões políticas e econômicas da época, mas faz uma espécie de ato de contrição em nome de seus conterrâneos. No Brasil, acompanharia os tempos de outra contenda, a Segunda Grande Guerra, mas sentiu pouco os efeitos. Estavam morando em Pompéia, cidade próxima de Marília, para onde o pai seguiu, com a família, assim que desembarcaram do navio Raburata Mar, em Santos, depois de 30 dias de viagem. Seriam os primeiros imigrantes japoneses a se instalarem em Pompéia. Era uma cidade afastada dos grandes centros, e não chegaram a sofrer sequer os preconceitos que alcançaram os japoneses que moravam no Brasil, na época da Guerra, por ter o Japão se aliado ao Eixo, com a Alemanha e a Itália.
“Meu pai nunca tinha pegado na enxada, e assim mesmo foi trabalhar em lavoura de algodão, café e milho".
Foram colonos durante algum tempo, mas trabalharam duro, trabalharam muito, e compraram 20 alqueires de terra. Viraram proprietários, as coisas melhoraram, mas o volume de trabalho não.
Isso não era problema, porém. Trabalhar é bom, garante Horácio, sorridente.
Shuiti Nishimura, um conterrâneo da família Shigueso, imigrado também um pouco mais tarde para Pompéia, decidiu abrir ali uma pequena fábrica de aparelhos para pulverização de lavouras, hoje a conhecida indústria Jato. Horácio viu ali a sua vocação: mecânica.
Foi na mecânica que Horácio encontrou o seu caminho profissional.
Primeiro como aprendiz, ajudando voluntariamente na fabricação das pulverizadoras, depois se envolvendo mais seriamente quando a fábrica começou a desenvolver o projeto de uma colheitadeira de café. Em pouco tempo era funcionário da fábrica. Trabalhou como mecânico, torneiro, fresador. Depois de algum tempo já consertava as máquinas de clientes da fábrica. Passava noites trabalhando, porque os clientes chamavam por socorro mecânico que tinha que ser feito fora do horário em que as máquinas eram usadas, portanto à noite. Muito moço ainda, já era o mecânico preferido para o atendimento de empresas como a Sanbra, de algodão e Anderson Clayton fabricante das máquinas de algodão. Ficou nessa ocupação durante alguns anos. Aí a Segunda Guerra acabou e ele resolveu vir para São Paulo.
Primeira vez em São Paulo
Um velho provérbio japonês diz que há quatro coisas que aterrorizam o homem: fogo, trovão, terremoto e pai.
Para vir para São Paulo, Horácio tomou o cuidado ritual de falar primeiro com o pai, pedir licença para sair de casa e mudar-se para a capital, onde queria estudar mecânica.
Tinha uns amigos em São Paulo. Trocaram cartas e o senhor Nishimura se encarregou de providenciar matrícula para ele na Escola Getúlio Vargas, na Rua Piratininga, mais famosa escola técnica de mecânica da época, e também providenciaram alojamento. Horácio deixou os pais, três irmãos e duas irmãs e veio para cá. Imagine-se a felicidade do jovem Horácio, andando de bonde de um tostão pela Avenida Celso Garcia, no Brás. "Eu me lembro quando preço de bonde subiu para dois tostões. Pessoal brigou, até", comenta ele, com um português ainda carregado de sotaque. Trabalhou na fábrica Anorma, também no Brás, para se manter.
Durou quatro anos a aventura. Em 1950, a mãe adoeceu. Ele estava às vésperas da festa de formatura, mas teve que deixar tudo e voltar para casa. Mas fez amigos até entre os professores. "Um deles falou para mim: vai tranquilo que vou mandar diploma pelo correio", conta com alegria.
Por esse tempo, a família se mudara para Adamantina, onde um dos irmãos tinha uma confeitaria e uma fábrica de doces, ao lado da qual ele abriu uma oficina mecânica, trabalhando com enrolamento de motores.
De volta à Capital
Com a morte da mãe, Horácio obteve do pai licença para retornar para São Paulo. Veio mais que depressa, porque deixara aqui uma namorada.
Instalou-se na Bela Vista, perto da Rua Frei Caneca, onde trabalhava a moça. Seus dias eram um contínuo subir e descer de ladeiras, lembra com gostosas risadas de saudade.
A família da moça morava em Guarulhos, e naquele tempo era quase uma viagem ir até lá. Davam-se muito bem, gostavam um do outro, mas o destino conspiraria contra a união. Surgiu em um dos dedos dele uma infecção esquisita. No princípio pensava que fosse algum cavaco de metal enfiado no dedo durante a operação da máquina, mas nada foi encontrado pelos médicos e não havia tratamento que desse jeito. O pai da namorada achou que fosse câncer e, temeroso de que a filha se casasse com um homem que morreria logo e a deixasse viúva, aconselhou que terminassem o namoro. Ajuizado e obediente, Horário aceitou, e com tristeza não mais encontrou a namorada. Só depois de três anos um amigo o levou ao Hospital das Clínicas, onde foi diagnosticada a leishmaniose, mas era tarde. Teve que amputar o dedo anular da mão esquerda.
Na Aclimação
Pouco tempo depois mudou-se para a Aclimação, com uma irmã.
Primeiro para a esquina da Rua José do Patrocínio com a Rua Paula Ney.
Mas teve que se mudar porque a máquina de tricô da irmã era muito barulhenta e a vizinhança reclamava. A casa nova era também na Rua José do Patrocínio, esquina com a Rua Machado de Assis. Aos fins de semana Horácio fazia-se vendedor: enchia malas com os bordados e tricôs da irmã e ia vender nas praças.
Casou-se nessa época com Cecília. "Minha senhora era muito bonita", ele diz com orgulho. Costureira prendada, era conhecidíssima no bairro que trabalhava com sua irmã Rosa Termi que ajudou-o a criar as filhas, quando ficou viúvo.
Horácio descobriu, nesse tempo, a eletrônica. Fez curso, habilitou-se, e lá se foi trabalhar na Cássio Muniz, com aparelhos de tv RCA, que estavam então chegando ao Brasil, e Philips. Dedicou-se bastante, como em tudo o que fez na vida, e se tornou um dos primeiros técnicos que atendia a domicílio, em São Paulo (não podemos nos esquecer de que televisão era novidade no Brasil, nesse tempo).
Depois de algum tempo aceitou convite e foi para as lojas Clipper como técnico. "O dono era Nilo Carvalho, que a gente pensava que era judeu, mas era do Nordeste", brinca Horácio. Ficou oito anos no emprego, e gostou especialmente quando a empresa lhe cedeu um carro Dodge, para que pudesse atender clientes em pontos diferentes da cidade.
Guarda até hoje os livros de pedidos, dois volumes grossos, de que fala com prazer. "Cheguei a atender quase 20 pedidos por dia."
Nos momentos de folga, curioso, começou a se envolver com montagem de aparelhos de tv, depois que viu um anúncio no jornal e acabou conhecendo uma loja na Avenida São João. Tinha aprendido calibragem de tvs na Cássio Muniz, e montagem era só o que faltava para que tivesse habilidade completa no setor.
Aí resolveu proclamar independência. Juntou o dinheiro que conseguiu guardar e comprou 200 tubos de televisão da fábrica Sylvannia.Guardou tudo numa sala, em casa, e dedicou-se ao conserto de aparelhos de televisão. Foi tudo bem por um tempo, mas montagem de televisão requer espaço e capital, duas coisas que ele não tinha.
Tentava conseguir dinheiro fazendo bicos como operador da máquina de projeção de um cinema, mas não adiantou muito. Por esse período, os bancos lançaram a moda do empréstimo, e com isso muitas pessoas conseguiram capital, e a concorrência ficou insuportável. Horácio abandonou a montagem e voltou a consertar aparelhos. Que é o que faz até hoje, apesar dos seus quase 80 anos.
Paixão pelo bairro
A mulher, Cecília, morreu no parto da terceira filha, Maria Toshie, hoje publicitária na TV Bandeirantes de Taubaté. As outras filhas são Elza Yoshie, a mais velha, e Regina Mitiko, mãe do único neto de Horácio. As três nasceram e foram criadas no bairro da Aclimação. Fez sempre questão de que elas estudassem nas melhores escolas, e não poupava esforços para conseguir isto. "Meu pai sempre falava que importante é educar, educar, educar."
Em 1990 decidiu ir para o Japão, para uma temporada. Trabalhou lá numa indústria mecânica "para não voltar de mão abanada", como diz.
Não pôde ficar mais tempo por duas razões. Primeiro porque se não voltasse ao Brasil perderia a cidadania brasileira, e segundo, as filhas estavam aqui e ele sentia falta do Brasil. "Acostumou aqui, gosta mais daqui, né? Parece que tem mais liberdade, aqui."
De volta, retomou o conserto de televisores e passou também a dar assistência para vídeo-cassetes. Sua oficina, em casa, era o seu castelo.
Mas teve os seus desassossegos também. Separava cuidadosamente as peças para os consertos em cima da bancada e começava o trabalho com muita atenção. De repente, pááá! Uma bolada no portão de ferro dava-lhe um susto e ele espalhava todas as pecinhas. Era a garotada do bairro, jogando futebol na frente da casa dele. Hoje ri muito dessas pequenas desventuras, mas confessa que ficava bravo com a molecada.
Privou da amizade de pessoas importantes do bairro. Uma vez, visitando a casa do então governador Lucas Garcez, recebeu uma xícara de café feita pelo próprio, e servida pelo próprio. Sentiu-se uma pessoa muito ilustre, diz.
Conheceu também o maestro Cardim, então diretor da Escola Caetano de Campos, a mais importante de São Paulo. Foi amigo da família Vidigal, de banqueiros e empresários.
Mas não modifica o seu jeitão simples. Conhece todo o mundo do bairro pelo nome, o nosso Horácio. "Muita gente passou por aqui. A gente tem saudades?
Circula com a sua Variant 74, azul, seu carro-símbolo, orgulhoso. Em uma rotina tranquila, ele diz, consertando uma televisão por dia e fazendo ele mesmo a entrega. "Não tenho tempo", reclama. Mas encontra tempo para acompanhar as festas, não somente da colônia japonesa, mas as brasileiras também. E para acompanhar o noticiário do Japão pela Directv. Sabe de tudo o que se passa na sua terra natal, tem notícia de como estão a Europa, os Estados Unidos e os países da América Latina. Na Ásia, então, sabe detalhes das Coréias, Indochina, comenta com tranquilidade acordos internacionais, tintim por tintim. Acompanha o Brasil também. Principalmente no esporte. Torce para o Corinthians, "mais ou menos".
O sobrinho tem uma indústria de cozimento de aço, na Moóca. Já o convidou para trabalhar. Mas "Horácio reclama que está velho e que não tem tempo. Não tem tempo. Para nada, segundo diz.
Anda com firmeza, apesar da idade, e acha que vai viver muito. Tem muitos casos na família de pessoas que viveram mais de 100 anos, e não tem dúvidas de que será um deles.
Entrevista e texto: Joaquim Maria Botelho, especial para o AclimacaoSP.