Escrito por: Newton C. Braga

Aplicações práticas envolvendo eletrônica e um peixe elétrico certamente não são comuns. Acreditamos até que algumas das que descreveremos neste artigo são inéditas. O fato é que o sistema de produção de eletricidade de algumas espécies de peixes constituem-se num verdadeiro relógio biológico de grande precisão, servindo como base de tempo para operação de dispositivos eletrônicos. Partindo de uma espécie de peixe comum no Brasil, e que constitui-se num verdadeiro "cristal" vivo, elaboramos alguns projetos interessantes que certamente podem servir de base para aplicações práticas ou experimentos de laboratório.

Obs. Este artigo é de 1988, mas se mantém atual e até pode ser aproveitado em projetos para feiras de ciências ou aplicações em ecologia e meio ambiente. Há alguns anos soubemos de uma pesquisa no sentido de utilizar os sinais de peixes para monitorar a qualidade de água de mananciais, pois a frequência, segundo se constatou depende do pH da água e ouros fatores que possam indicar poluição.

 

Imaginem um peixe que se oriente através de um campo elétrico estabelecido em torno de seu corpo.

Este campo tem que ser alternado, pois se for produzida uma corrente contínua pode haver um fenômeno denominado eletrólise, além de ficar mais difícil a detecção de eventuais distorções pela presença de objetos (figura 1).

 

Figura 1 – Usando o campo de corrente para detectar objetos
Figura 1 – Usando o campo de corrente para detectar objetos

 

Pois bem, este peixe existe. Na verdade existem muitas espécies de peixes, que vivem na Bacia Amazônica e mesmo em outros rios do Brasil, que se utilizam deste sistema de orientação; isso sem se falar nas espécies que são capazes de perceber fracas correntes elétricas na água através de órgãos sensores especiais.

O interessante, porém, nos peixes que se utilizam de campos para orientação, é o fato de seus campos constituírem-se de correntes alternadas ou pulsantes que mantêm a frequência fixa com grande precisão.

Estas correntes são intensas o bastante para poderem ser detectadas pela simples introdução de dois fios nas proximidades do peixe que a gera, conforme mostra a figura 2.

 

Figura 2 – Detectando as correntes geradas pelos peixes
Figura 2 – Detectando as correntes geradas pelos peixes

 

As frequências destas correntes ficam na faixa de 100 Hz a 2000 Hz, o que quer dizer que a simples ligação dos eletrodos na entrada de um amplificador de áudio já permite a audição de um som contínuo de excelente pureza, pois algumas espécies produzem sinais praticamente senoidais.

Conseguindo em São Paulo uma das espécies mais comuns, e que produz um campo na faixa de 700 a 2000 Hz, o conhecido ltuí-cavalo do gênero Apteronotus, tivemos extrema facilidade em utilizá-lo como padrão de frequência para a elaboração de projetos interessantes que descreveremos neste artigo.

Observe que estes peixes, que vivem em águas turvas e possuem hábitos noturnos, produzem durante toda sua vida o campo elétrico, que então pode ser detectado a qualquer momento.

Os projetos que propomos são os seguintes:

a) Um simples amplificador para “ouvir" o campo produzido pelo peixe, servindo para demonstrações.

b) Uma base de tempo digital que fornece pulsos na frequência de 1 a 2 Hz, servindo para controle de circuitos de tempo diversos. Este circuito pode excitar um sistema sequencial ou de aviso controlado exclusivamente pelo próprio peixe.

c) Um timer que permite o acionamento de um sistema de alimentação automática para o próprio peixe em intervalos que podem ser fixados em 12 ou 24 horas, conforme o desejo do usuário.

d) Um relógio digital cujo “clock" é produzido pelo próprio peixe, que se torna desta forma um verdadeiro “cristal vivo".

 

OS PEIXES ELÉTRICOS

Existem muitos estudos sobre os peixes elétricos, principalmente o mais conhecido que é o Poraquê, ou enguia elétrica (Electrophorus), que são capazes de produzir pulsos de curta duração (1ms), mas cuja tensão atinge 5OOV sob uma corrente de 1A.

Este peixe utiliza seus órgãos elétricos como meio de ataque e defesa, paralisando, ou mesmo matando, eventuais inimigos ou presas que dele se aproximem.

No entanto, existem muitas outras espécies que também utilizam-se do fato da água poder conduzir a eletricidade nas condições naturais, em que existe sempre um certo teor de sais dissolvidos, para sistemas de orientação.

Acredita-se até que mais de 50% de todas as espécies de peixes de água doce ou emitem certa quantidade de sinais elétricos ou então podem recebê-los através de órgãos especiais.

E claro que, na maioria destas espécies, os sinais são muito fracos para que possamos senti-los, mas os próprios peixes possuem sensores que os percebem.

Segundo pesquisas, existem seis famílias de peixes de água doce que possuem órgãos elétricos, conforme se segue:

1. Electrophoridae - o principal representante é a enguia elétrica que forma o gênero Electrophorus (Poraquê). É o maior dos gimnotóides e o único com órgãos de alta tensão capazes de usar a descarga elétrica como arma de defesa e ataque. Eles também possuem órgãos elétricos de baixa tensão separados, para emissão de pulsos de frequência mais baixa e de operação irregular para eletrolocalização e eletrocomunicação.

2. Gymnotoidae ~ o mais conhecido desta espécie é o Sarapó, ou Carapó, constituindo-se num peixe emissor de pulsos de frequência média de 50 Hz, podendo chegar a 45 cm de comprimento.

3. Rhamphichthidae - este é um grupo de peixes de frequência média que inclui o gênero Rhamphichthys, que pode chegar a mais de1 metro de comprimento.

4. Hypopomidae - constitui-se no grupo mais diversificado, com a emissão de frequências baixas, médias e altas. Considera-se, no caso, uma frequência baixa a que se situa abaixo de 30 Hz, média a situada entre 30 e100 Hz e alta aquela acima de100 Hz.

5. Sternopygidae – diferentemente das demais famílias descritas anteriormente, esta é a primeira que em lugar de pulsos produz ondas. Temos então o gênero Sternopygus que produz sinais de médias frequências entre 70 e 140 Hz. O gênero Eigenmannia incorpora várias espécies com frequência de 200 a 500 Hz.

6. Apteronotoide - estes são os produtores das frequêncías mais altas, na faixa de 700 a 2100 Hz, e são notáveis por possuírem os ritmos mais regulares conhecidos no mundo (verdadeiros “cristais" vivos). As pequenas modulações de frequência que ocorrem sob o controle do cérebro deste animal possuem significado comunicativo. O Apteronotus (ltuí-cavalo), que é um peixe ornamental muito conhecído no Brasil, é um membro deste grupo.

Na figura 3 damos os aspectos destes peixes.

 

Figura 3 – Peixes elétricos comuns
Figura 3 – Peixes elétricos comuns

 

Existem ainda os peixes que possuem órgãos sensores de eletricidade que não serão abordados neste artigo.

No entanto, citaremos no final do artigo literatura que pode ser consultada pelos interessados.

Na figura 4 mostramos os aspectos dos órgãos geradores de eletricidade (dois tipos), ambos para os gimnotóides.

 

Figura 4 – Os órgãos produtores de eletricidade
Figura 4 – Os órgãos produtores de eletricidade

 

Cada camada de célula constitui-se numa “pilha" gerando em torno de 100 mV.

Estas células são ligadas em série, de modo que suas tensões se somam.

Em (B) temos o órgão do ltuí-cavalo, que é uma espécie produtora de alta frequência e baixa tensão.

Seu órgão é formado por terminações nervosas especializadas dos axônios efetuadores. Os nervos são dispostos segundo uma repetição em cada segmento vertebral com orientação tal que permite a soma das tensões.

Na figura 5 temos as "formas de ondas" dos sinais produzidos por algumas espécies.

 

Figura 5 - Formas de onda dos sinais produzidos
Figura 5 - Formas de onda dos sinais produzidos

 

 

OS PROJETOS

Evidentemente existe um interesse biológico considerável em relação a estes peixes. Com a ajuda de recursos eletrônicos poderemos não só estudá-los, como também desenvolver alguns dispositivos de interesse ou ouriosidade.

Tomando como base um ltuí-cavalo, facilmente encontrado em casas de peixes ornamentais em São Paulo, realizamos algumas montagens que agora passamos a descrever.

 

1. Pré-amplificador + amplificador

Podemos tornar audíveis os sinais gerados por um Ituí-cavalo (ou outras espécies) com a utilização de um pequeno amplificador de áudio e um eletrodo.

O eletrodo que é mostrado na figura 6 servirá também para a realização de outras experiências.

 

Figura 6 – Construção do eletrodo (sensor)
Figura 6 – Construção do eletrodo (sensor)

 

O aquário usado, com aproximadamente 15 x 30 x 20 cm (de pequenas dimensões, portanto) contém um único peixe (não devemos colocar mais de um no aquário, tanto pelo fato de haver interferências entre os campos como também pelo fato deste peixe ter hábitos solitários).

Se o local da experiência estiver sujeito a ruídos elétricos ambientes como, por exemplo, de lâmpadas fluorescentes ou motores, será interessante apoiá-lo numa base de metal devidamente aterrada (o negativo da entrada do amplificador serve).

Na figura 7 temos então um simples pré-amplificador transistorizado para esta finalidade.

 

Figura 7 – Pré-amplificador para o sensor
Figura 7 – Pré-amplificador para o sensor

 

Para um ganho controlado com um funcionamento muito mais preciso e sensível pode ser usado o amplificador operacional da figura 8.

 

Figura 8 – Circuito com amplificador operacional
Figura 8 – Circuito com amplificador operacional

 

O amplificador final pode ser de qualquer tipo, dando-se preferência aos tipos que possam ser alimentados por pilhas, para se evitar a captação de qualquer ruído de rede.

Um TBA820 pode servir, com excelente desempenho para o caso. Na figura 9 damos este circuito.

 

Figura 9 – Amplificador de áudio para os experimentos
Figura 9 – Amplificador de áudio para os experimentos

 

 

Obs. No site do autor podem ser encontrados amplificadores com componentes mais modernos como os que fazem uso do LM386, TDA7050, TDA7052, etc.

Para um trabalho experimental nada impede que o circuito seja totalmente montado em matrizes de contatos e alimentado por pilhas comuns.

No caso específico do amplificador operacional, um voltímetro de corrente alternada pode ajudar no levantamento do campo de correntes, conforme sugere a figura 10.

 

Figura 10 – O campo de correntes
Figura 10 – O campo de correntes

 

Veja que o ganho do operacional pode ser dado pelo valor, em pelo resistor de realimentação, ou posição do potenciômetro, em Ω, dividido por100.

Assim, com um resistor de 1M na realimentação teremos um ganho 7 igual a 10.

 

2. Base de tempo

Captando o sinal senoidal gerado pelo peixe e passando-o por um disparador que o torne retangular, e em seguida aplicando-o a um divisor digital de valor calculado, podemos obter pulsos de frequência fixa para sincronismo de diversos dispositivos.

O circuito indicado na figura 11 mostra como isso pode ser feito.

 

Figura 11 – Divisor de frequência
Figura 11 – Divisor de frequência

 

O sinal é captado pelos eletrodos e amplificado por um amplificador operacional 3140.

Depois disso ele é levado a um transmissor pré-amplificador que o aplica a um inversor-disparador.

Obtemos então sinais retangulares que são aplicados a um divisor binário de 12 estágios com o conhecido 4040.

Para um sinal de 1400 Hz produzido pelo peixe, fazendo a divisão por 210, ou 1024, obtemos uma frequência de 1,367Hz na saída correspondente ao pino 14.

No circuito experimental que descrevemos aplicamos este sinal de sincronismo juntamente com o próprio sinal de áudio a uma porta NAND, de modo a gerar "bips" intervalados que são levados a um amplificador.

Este circuito foi usado para demonstrar a incrível invariabilidade dos sinais gerados por este peixe. Um LED adicional colocado no pino 14 do 4040 piscará no ritmo de 1,367Hz.

Poderão surgir dúvidas de como proceder para a realização desta montagem com a obtenção de uma frequência exata de saída.

Neste caso o primeiro passo é determinar a frequência exata de seu peixe.

Cada exemplar terá sua frequência, já que, como dissemos, ela estará entre 700 e 2100 Hz. Uma vez determinada, você não precisará mais se preocupar, pois ela se manterá invariável enquanto o peixe estiver vivo!

Para medir a frequência bastará Iigar um frequencímetro no pino de saída (12) do 4069.

Conhecendo-se a frequência poderemos fazer a seleção do fator de divisão, quer seja pelo 4040 quer seja por um divisor programável, caso em que poderemos facilmente obter valores inteiros como por exemplo 1Hz para sincronização de um relógio.

Na figura 12 damos o circuito de um divisor programável de frequência.

 

Figura 12 – Divisor programável de frequência
Figura 12 – Divisor programável de frequência

 

 

3. Timer para aquários

Chegamos finalmente a um projeto de utilidade prática real, que é um timer para aquários. Podemos programar o acionamento de um alimentador em intervalos de 12 ou 24 horas dados pelo próprio peixe elétrico.

O circuito básico é o mesmo da base de frequência com um divisor adicional que fornece os pulsos de ativação de um monoestável a cada 12 ou 24 horas (figura 13).

 

Figura 13 – Timer para aquário
Figura 13 – Timer para aquário

 

Numa aplicação simples, usando o 4040, em que não necessitamos de grande precisão, o procedimento foi simples. Levando em conta que 12 horas correspondem a 43 200 segundos, e nossa frequência de saída no pino 14 do 4040 (primeiro) é de 1,367 Hz, fazendo a divisão por 215, ou seja, 32 768, obteremos nosso intervalo com uma precisão de 96%.

Os 215 podem ser obtidos com a ajuda de dois 4040. O primeiro fazendo a divisão por 212 e o segundo por 23, resultando assim no valor desejado.

Para o dispositivo mecânico de alimentação existem diversas possibilidades utilizando-se de vibradores ou solenoides. Na figura 14 damos o aspecto de um que lança pastilhas de alimento nos intervalos programados.

 

Figura 14 – Alimentador automático
Figura 14 – Alimentador automático

 

 

4. Relógio ou cronômetro

O circuito é o divisor programável que já descrevemos na figura 12.

O circuito do relógio é mostrado na figura 15.

 

Figura 15 – Sincronizando um relógio
Figura 15 – Sincronizando um relógio

 

O relógio citado como da figura 12 é na verdade relógio que publicamos em outro artigo do site ou até mesmo um relógio comum digital adaptado.

Desligamos o clock interno e passamos a usar o clock externo sincronizado pelo peixe.

É claro que o fator usado no divisor programável dependerá especificamente de cada exemplar de peixe, portanto o montador com a ajuda de um frequencímetro deve determinar antes a frequência do sinal gerado.

A partir desse valor é que deve ser programado o divisor para se obter 1 Hz na saída e então aplicamos este sinal à entrada do relógio.

 

CUIDADOS ESPECIAIS

Além de temperatura adequada da água e alimentação conveniente, o peixe deve ainda ter condições adicionais que simulem o ambiente em que vive.

Assim, para o Ituí-cavalo a existência de pedras ou cavidades é necessária, pois este peixe gosta de se esconder, principalmente na presença de iluminação mais forte.

Quando em repouso, este peixe costuma deitar-se no fundo do aquário, apoiado na sua parte lateral, dando a impressão que se encontra morto.

Sua atividade mais intensa, quando então ele se alimenta, ocorre à noite.

Para o funcionamento perfeito de todos os circuitos propostos é preciso que ruídos externos sejam eliminados e que ocorra uma diferença de potencial máxima entre os fios de captação.

Para isso, é interessante escolher um bom posicionamento do eletrodo no aquário.

Com a movimentação brusca do peixe podem ocorrer pontos de neutralização do sinal e momentâneas paradas dos circuitos poderão ser notadas, mas em geral poucos ciclos de vem falhar nestas condições.

Verifique também qual é a temperatura e pH ideais para manutenção de um ambiente apropriado ao peixe.

 

BIBLIOGRAFIA

Conseguimos um excelente artigo sobre os peixes elétricos na Biblioteca do Instituto de Biologia da USP, São Paulo, na revista ACTA AMAZONICA 9(3) 519-572 de 1979. O artigo Aspectos do Uso da Descarga do Órgão Elétrico e Eletrorrecepção nos Gymnotoidei e Outros Peixes Amazônicos é assinado por diversos pesquisadores. No final do artigo existe uma vasta bibliografia relativa ao assunto.